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      China-Celac: ninguém se salva sozinho

      Análise de Fernando Capotondo, na chave de O Eternauta

      (Foto: Xinhua)
      Redação Brasil 247 avatar
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      “Comunidade de futuro compartilhado”, “cooperação”, “multilateralismo”, “solidariedade” e “ganha-ganha” foram as expressões mais ouvidas esta semana em Pequim, durante a IV Reunião de Ministros do Fórum China-Celac, na qual o presidente Xi Jinping anunciou cinco programas de desenvolvimento para a América Latina e o Caribe (ALC). As iniciativas incluem desde uma linha de crédito de quase 10 bilhões de dólares até isenção de vistos para cinco países da região, entre eles a Argentina.

      “China e ALC já formam uma comunidade de futuro compartilhado que avança de mãos dadas e que tem como característica essencial o tratamento em pé de igualdade; como principal impulso, os benefícios mútuos e os ganhos compartilhados; como visão e qualidade, a abertura e a inclusão; e como propósito fundamental, o bem-estar dos povos”, afirmou Xi na abertura do fórum, ao marcar uma diferença profunda entre sua proposta e as fórmulas unilaterais que outros países (leia-se Estados Unidos) costumam impor por meio de mecanismos coercitivos.

      “Não há vencedores nas guerras tarifárias e comerciais, e portanto adotar condutas intimidatórias e arrogantes não serve senão para isolar a si mesmo”, destacou o mandatário em seu discurso, 24 horas depois da trégua de 90 dias que ele havia acertado com seu homólogo Donald Trump.

      A esse respeito, acadêmicos e analistas internacionais concordaram que os dois documentos aprovados no fórum — a Declaração de Pequim e o Plano de Ação Conjunto China-Celac para a Cooperação em Áreas-Chave (2025–2027) — funcionaram como um alerta velado ao “nostálgico” presidente Donald Trump, que insiste em ressuscitar o velho debate sobre o “quintal” dos EUA e a não menos obsoleta “Doutrina Monroe” (“A América para os americanos”, ou seja, para os estadunidenses).

      “O fato de o presidente Xi propor que as forças motrizes dessa cooperação sejam a igualdade, o benefício mútuo e o ganha-ganha; e destacar a abertura, a inclusão e o bem-estar do povo estabelece uma plataforma muito diferente dos acordos que historicamente foram propostos pelos Estados Unidos e Europa”, explicou o sociólogo argentino Marcelo Rodríguez, em conversa com a Xinhua.

      Por sua vez, o diretor do Observatório Sino-Argentino, Patricio Giusto, declarou à agência que o atual contexto internacional “está marcado por uma onda de unilateralismo extorsivo, que tem a chantagem econômica como sua principal ferramenta de política externa”, razão pela qual o Fórum China-Celac “voltou a reafirmar a importância do multilateralismo e das relações igualitárias para promover o desenvolvimento”.

      Nessa jogada dupla — de diferenciar-se de Washington e, ao mesmo tempo, impulsionar projetos de caráter coletivo — o chanceler Wang Yi afirmou que o objetivo da China na ALC é defender a independência e a autodeterminação dos países, salvaguardar a paz e a segurança, concretizar o desenvolvimento, insistir no multilateralismo e aprofundar a unidade e a cooperação, conforme descreveu em um artigo publicado em diversos países.

      Colocando os pingos nos is

      Somente a partir dessa distinção entre as políticas da China e dos EUA — tão reveladoras, tão distintas — é possível analisar o movimento de Pequim em prol das comunidades de futuro compartilhado, uma política de desenvolvimento global que aparece em quase todos os seus documentos oficiais da última década.

      Daí vem a expectativa natural dos países da ALC quanto à implementação efetiva dos cinco programas anunciados no fórum, voltados para Solidariedade, Desenvolvimento, Civilização, Paz e Conectividade entre os Povos, que serão colocados em prática com as seguintes medidas:

      •  Lançamento imediato de uma linha de crédito especial de quase 10 bilhões de dólares norte-americanos.
      •  Oferta de 3.500 bolsas de estudos governamentais, 10.000 oportunidades de capacitação, 500 bolsas internacionais para professores de chinês, 300 vagas para capacitação de profissionais na redução da pobreza e 1.000 bolsas financiadas pelo programa “Ponte Chinesa”, tudo isso em um período de três anos.
      •  Aplicação de uma política experimental de isenção de visto para cidadãos do Brasil, Argentina, Chile, Peru e Uruguai, entre 1º de junho de 2025 e 31 de maio de 2026.
      •  Convite a 300 membros de partidos políticos dos países da Celac para visitarem a China e realizarem estudos e intercâmbios de experiências sobre governança local e global.
      •  Aumento da importação de produtos com valor agregado provenientes da ALC e incentivo às empresas sediadas na China para que ampliem seus investimentos na região, como forma de equilibrar a balança comercial.
      •  Criação de uma Zona Livre de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe, como parte de uma política mais ampla de segurança global.

      A China confia que a implementação desse conjunto de medidas — somadas a mais de 100 projetos trienais de cooperação e 20 iniciativas de apoio ao desenvolvimento da ALC — fortalecerá o volume de comércio, que alcançou 518,4 bilhões de dólares em 2024.

      A esse respeito, o embaixador da China na Argentina, Wang Wei, recordou que “ambas as partes promoveram ativamente a articulação profunda da Iniciativa do Cinturão e Rota com as estratégias de desenvolvimento dos países da região, e colocaram em marcha mais de 200 projetos de infraestrutura, gerando milhões de empregos”.

      Um exemplo do interesse em comerciar com a China foi o novo recorde de 290.000 estrangeiros que participaram este mês da chamada Feira de Cantão. Desses, cerca de 4.000 eram argentinos, o que representou um aumento surpreendente de 90% em comparação com a edição de 2024.

      Na contramão

      Apesar do entusiasmo do setor privado argentino, o governo de Javier Milei optou por seguir na direção oposta, conforme evidenciado pela decisão de enviar uma delegação de “segundo escalão” da chancelaria ao Fórum China-Celac — um evento marcado pela presença de chefes de Estado como Xi Jinping (China), Lula da Silva (Brasil), Gustavo Petro (Colômbia) e Gabriel Boric (Chile).

      A delegação argentina foi composta pelo número dois do Ministério das Relações Exteriores, Eduardo Bustamante, e seu chefe de gabinete, Ricardo Lachterman. Ambos deixaram o evento antes do encerramento, evitaram a tradicional foto de família e, acima de tudo, não assinaram a declaração final — em defesa do multilateralismo — que foi aprovada pelos demais países participantes.

      De fato, o governo argentino foi o único a se recusar a assinar o documento final do fórum internacional, atitude que não passou despercebida e que vários analistas interpretaram como uma “sobreatuação no alinhamento do presidente Javier Milei com os Estados Unidos”.

      “A República Argentina esteve ausente do Plenário Ministerial da Quarta Reunião do Fórum Celac-China e não participou da adoção desses documentos”, registra expressamente o informe final de 28 pontos — o qual, vale notar, não incluiu o tradicional apoio à reivindicação argentina de soberania sobre as Ilhas Malvinas, um tema sempre priorizado nas posições diplomáticas do país.

      Assim como fez com os BRICS, o governo argentino preferiu se retirar, isolar-se e recusar a adesão à aliança da ALC com seu segundo maior parceiro comercial, segundo destino de investimento fora da região e principal fonte de investimento estrangeiro.

      “Ninguém se salva sozinho” — talvez reflitam aqueles que, diante do que ocorreu em Pequim, se recordem da figura de Juan Salvo em O Eternauta, a criação de Héctor Oesterheld que viralizou graças à Netflix. “O verdadeiro herói é o herói coletivo”, dizem que também dizem na China — mesmo que por lá ninguém tenha lido a clássica HQ argentina.

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